Presidente da parada de SP: negra, lésbica e inconformada

Cláudia Garcia é uma das pioneiras do movimento homossexual da cidade e do Brasil. E tem idealismo para muito mais

Publicado em 06/12/2020
claudia garcia presidente de parada de São paulo
"Vivi a repressão, a ditadura. Primeira vez que andei na rua de mãos dadas com namorada foi na parada", lembra

Por Welton Trindade

O jornalismo é para incomodar. Quem? Até mesmo a entrevistada! É a conclusão que dá ao escrever esse perfil da presidente da entidade que organiza a maior marcha arco-íris do mundo, de São Paulo, Cláudia Garcia.

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A impressão de que o título da reportagem tem potencial de desagradá-la vem do fato de haver nele partes da identidade dessa paulistana de 57 anos de idade e nascida no bairro do Mandaqui, na zona norte.

O ponto é que essas palavras, dentre tantas outras em um movimento conhecido pela sopa de letras com retrogosto de esperneio, podem dar vazão a pulsões separatistas. Cada um pega a sua letra e vai (ou pelo menos tentar) cuidar de sua vida. 

E poucas coisas parecem irritar mais Cláudia do que esse cada-um-por-simismo!

"Não sei ficar em grupo de lésbicas, em grupo de negro, em grupo de pobre... Essas visões por sigla, achando mais pontos de separação do que de união apenas nos divide. De forma alguma nos fortalece. Não entendo quem não compreende isso e aposta no sectarismo", diz de forma tão firme quanto merecedora de reflexão. 

Mas fique refletindo aí você! A presidente desde 2017 e até 2023 da Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo quer é ação!

Melhor: quer é continuar a atuar, algo que ela faz desde antes de provavelmente você ter nascido! 

Ali por fim da adolescência dela, veio o primeiro contato com o mundo lésbico, no Ferro's Bar, no final dos anos 1970, no centro de São Paulo.

O agito, a paquera, entretanto, não a seduziram. "Eu fiquei decepcionada, admito. Tudo era em torno de papéis, ativa, passiva etc... Não gostei". 

Inconformada ela! 

claudia garcia parada orgulho são paulo
Ela critica separação de identidades. A convivência ensina a respeitar, acredita

Sua excitação era a política, que ela encontrava na mesa ao lado, em algum outro boteco no Bixiga. "Era ditadura militar. A área era lugar de encontro de pessoas de esquerda, do movimento estudantil. Logo estava envolvida naquilo tudo."

Uma lésbica se descobrindo e querendo fazer luta política. Em pouco tempo, estava lá Claudia em dois marcos pioneiros no movimento homossexual brasileiro.

Ela integrou o primeiro coletivo organizado de ativismo homossexual, o Somos, em São Paulo, fundado em 1978, e era uma das participantes do I Encontro de Grupos Homossexuais Organizados (EGHO), em abril de 1980. 

Houve divisão, semanas depois. Boa parte das mulheres homossexuais saíram do Somos e fundaram o Grupo Lésbico-Feminista. Cláudia não 

Inconformada ela!

"Eu sempre acreditei em grupos mistos. Em composição. Em nos somarmos. Isso é algo que adquiri com minha participação nos partidos políticos, nos quais há pluralidade no debate mesmo dentro de um mesmo objetivo. Normal."

Alguém falou partido? Não haveria como não falar! A ligação com a luta partidária está no mapa genético-libertário de Cláudia.

Ela foi uma das primeiras filiadas ao então recém-criado Partido dos Trabalhadores (PT), vinda da tendência Liberdade e Luta (Libelu), de matiz trotskista, que teve origem no movimento estudantil e defende o marxismo. 

Uma crítica dela ao movimento arco-íris nessa época, fins dos anos 1980, a fez se afastar.

"Os grupos eram muito focados em apoio, discussões sobre vivências, sexualidade... Não era o que me animava. Eu queria luta política para transformação social."

Inconformada ela! 

Focada na questão partidária de esquerda, ela viveu o lado amargo que marca as agremiações desse campo até pelo menos meados dos anos 1990 em relação às pautas identitárias. 

"Era dito e praticado: para essas linhas de pensamento, atuar na questão negra, LGBT, da mulher era fazer a luta menor. A luta maior era a de classe! O resto era acessório e não incentivado porque pensavam que dividiria a classe operária."

A virada de século seria de reconciliação dela com o movimento LGBT. E de libertação individual!

"Eu cresci na ditadura... Vivi a repressão. Não era acostumada a andar de mãos dadas com namorada na rua... A primeira vez que fiz isso foi na parada."

Com essa vivência, ela passou a integrar a associação organizada da marcha. Entre 2002 e 2005, foi voluntária, chegou a ocupar cargo na diretoria, mas saiu em 2005 por conta de outras seduções de luta. 

Inconformada ela! 

Cinco anos depois, por pedido do então presidente da ONG, Manoel Zanini, Cláudia voltou a integrar a parada. E não saiu mais! 

Desde 2017 é a presidente, a primeira lésbica nesse posto na organização da marcha paulistana. E continuará com o direito a sê-la até 2023, o que foi possível por ela ter sido reeleita em 2020. 

Trata-se de grande momento na vida dela, reconhece.

"É uma honra, é um desafio.. E creio que veio como recompensa do conjunto da obra do meu ativismo. E é algo gigantesco! Nenhum cargo no PT me deu tanto destaque, a visibilidade é enorme."

Conjunto da obra que foi - e ainda é - feita com contestação e crítica até ao próprio movimento. 

parada do orgulho lgbt de são paulo
Ativista comemora ter colocado contas da entidade em dia e profissionalizado gestão

"Eu ainda fico chocada com algo que vejo no movimento LGBT e não via nos partidos. Nos partidos, a gente tem foco, sabemos nossos inimigos, estão lá fora. Mas, no ativismo arco-íris, ainda há muito ataque interno, picuinha, disputa de identidades... Não me desce isso. Vamos educando para que isso mude."

Inconformada ela!

Antes de julgá-la, veja que há estratégia clara no que ela defende. E luta precisa de estratégia ou vira piquenique para lacração, camarada! 

"Como mudar o gay machista se a lésbica ficar lá do outro lado? Como educar a lésbica racista se os negros saírem? É pela convivência que vamos nos aperfeiçoar!"

E não é só discurso. É práxis. A parada atua por meio de diversos grupos de trabalho por identidade. Peças da mesma engrenagem!

De toda forma, as falas pontiagudas não param. "Muita gente traz para as ONGs carências pessoais, problemas de relacionamento... E nisso acabam personalizando tudo, o que leva ao atrito. Temos de focar, focar: nossa atuação deve ser política contra o inimigo, que está, por exemplo, na cadeira da presidência da República. E não ficar nos alfinetando."

Inconformada ela! 

Como outro exemplo dessa impaciência com o que Cláudia classifica como perda de energia é a tentativa de algumas pessoas de não usar mais a bandeira do orgulho (seis cores) e erguer a chamada bandeira do progresso, com triângulos sobre o arco-íris. 

"Ah, não tenho paciência mesmo com isso. Realmente isso é algo que mereça um minuto de discussão? Ficar mudando bandeira? Por favor!"

Inconformada ela! 

E por falar em objetivos claros, ela já tem um bom rosário de alguns alcançados em sua gestão até agora. 

Aí ela elenca o fato de ter colocado em dia as finanças da entidade, ter profissionalizado a gestão, com contratação de equipe de advocacia e de contabilidade, e ampliação da conversa com empresas na busca e conquista de patrocínios. 

E qual o recado para quem critica a parada?

"O ponto aí é que aparecem muitos para apontar erros, mas cadê quando é para construir? Temos erros? Sim! Mas, mesmo assim, fazemos história e algo que marca São Paulo e o Brasil a cada ano. E vamos sempre melhorar."

A conversa termina com a Cláudia que alerta com voz forte! 

"Vamos acordar! A democracia está sob risco! Quem quer a ditadura quer um povo despolitizado! E não podemos fazer parte disso, aceitar! Ver e não fazer nada! Sim, conquistamos muitas coisas... Casamento, nome social... Mas nada é eterno! O conservadorismo está no poder!"

"Inconformadora" ela! 


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