Livro analisa 126 personagens LGBT de 62 novelas da Rede Globo

Autora encontrou avanço na representação arco-íris com problematização de temas tais como homofobia

Publicado em 27/07/2015

Bicha (nem tão) má, de Fernanda Nascimento, reúne 126 personagens LGBT em novelas

O arco-íris no principal programa televisivo no Brasil, a novela, não é recente, mas tem tornado-se mais ativista, complexo e humanizado. Essa é uma das conclusões do livro Bicha (nem tão) má - LGBTs em telenovelas. A obra foi escrita pela jornalista e mestre em Comunicação Social, Fernanda Nascimento. O lançamento será realizado em 30 de julho, na Livraria Baleia (Rua Santana, 252 - Porto Alegre) a partir das 20 horas.

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Fruto da dissertação de mestrado da autora, defendida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social (PPGCOM) da PUCRS, a obra aborda a participação e representação de personagens LGBT nas telenovelas da Rede Globo, entre 1970 e 2013.

Fernanda realizou extensa análise de 126 personagens LGBT em 62 produções. A múltipla identidade da personagem Felix (Mateus Solano), da novela Amor à Vida (2013), serve de fio condutor para a compreensão dessas representações. Que as cores nunca mais saiam da TV! 

Quantos personagens de cada segmento você encontrou? Como levantou esse número?
O mapeamento foi realizado a partir do cruzamento dos dados de 10 dissertações de mestrado e uma tese de doutorado produzidas até 2012 sobre a temática. Estes dados foram verificados nos sites de memória da Rede Globo, bem como confrontados com outras fontes de informação, tais como jornais e revistas do período de exibição das narrativas.

Uma das ausências que percebi nestas pesquisas – e com a qual procurei contribuir – é a de dados que não universalizassem a experiência LGBT. Assim, acrescentei informações de cada personagem sobre a classe social, a faixa etária, a raça, a performatividade de gênero, entre outros. O resultado é um panorama de 126 personagens, que participaram de 62 narrativas, entre 1970 e 2013.

A presença majoritária é de gays, que totalizam 76 personagens. As lésbicas aparecem em número mais reduzido, somente 24. Homens bissexuais são 13. Mulheres bissexuais somam três. Há a presença de uma travesti e oito transexuais. Houve ainda a participação de Sarita Vitti (Explode Coração, 1995) que não tinha a identidade de gênero e a orientação sexual definidas. Além de Buba (Renascer, 1993), que é intersexual. Não há a participação de homens trans.

Glorinha (Isabel Ribeiro) e Roberta (Regina Viana), casal lésbico na novela 'O Rebu'
Glorinha (Isabel Ribeiro) e Roberta (Regina Viana) em 'O Rebu'

Como eram os personagem nos anos 1970?
Os anos 1970 foram marcados pela presença de homens homossexuais, oriundos de classes populares e com uma performatividade de gênero camp, como nas tramas de Assim na Terra como no Céu (1970), O Astro (1978), Dancin’ Days (1978) e Marron Glacê (1979). Esta performatividade se traduz nas extravagâncias e formas afetadas de falar e se vestir, que destoam da perspectiva de comportamento heteronormativo. A maioria destes gays eram personagens de núcleos cômicos, que ocupavam posições subalternas.

A presença de gays é majoritária, mas há exceções. Nos primeiros anos, existe a presença do casal lésbico formado por Roberta e Glorinha – que podem ser consideradas o primeiro casal LGBT das novelas da Rede Globo, em O Rebu (1974). A trama também é pioneira na participação de Conrad, o vilão gay rico que se apaixona por um rapaz mais jovem e torna-se um assassino por ciúmes – em uma sexualidade que destoa da norma, pois envolve o cruzamento de gerações e a dependência financeira de Cauê. Outro fator de destaque são as tematizações sobre o preconceito e/ou discriminação contra identidades sexuais e de gênero não normativas.

Em O Grito (1975), a personagem Agenor sofre por não se enquadrar dentro das normas estabelecidas pela sociedade para o gênero masculino. Ao refletir sobre a escala das sexualidades a partir da hierarquia proposta pela pesquisadora Gayle Rubin, verifica-se que afora o fato de não serem heterossexuais, há poucas informações sobre a sexualidade de muitas personagens.

Denis Carvalho e Fernanda Montenegro em 'Brilhante'
Denis Carvalho e Fernanda Montenegro em 'Brilhante'

O que veio nos anos 1980?
Foi época de exposição maior, na qual despontaram 11 telenovelas com personagens LGBT. Alguns aspectos podem ser destacados: a continuidade da predominância da homossexualidade masculina, presente nas tramas: Brilhante (1981), Partido Alto (1984), Roda de Fogo (1986), Mandala (1987), Sassaricando (1987) e Pacto de Sangue (1989). Assim como na década anterior, se mantém uma participação maior de gays com performatividade de gênero camp, com profissões ligadas às classes populares, como mordomos, cozinheiros e gurus, e em papéis secundários.

Em uma análise mais aprofundada, percebe-se que a narrativa de Brilhante (1981) é a primeira a propor uma discussão mais intensa sobre as relações familiares e o preconceito e/ou discriminação contra identidades sexuais e de gênero não normativas, quando problematiza a história de Inácio e sua mãe, Chica (Fernanda Montenegro). Essa década também marca a primeira participação de um homossexual negro nas telenovelas, com a presença de Bob Bacall, em Sassaricando (1987).

Lala Deheinzelin e Cristina Prochaska: casal lésbico em 'Vale Tudo'
(Cecília) Lala Deheinzelin e (Laís) Cristina Prochaska em 'Vale Tudo'

A experiência lésbica é representada em um número ampliado de telenovelas em comparação com a década anterior. Entretanto, a ampliação de espaço não significa uma pluralidade de representações, pelo contrário, lésbicas deste período continuam com sua sexualidade bastante regulada: as homossexuais com direito a vivenciarem sua sexualidade são aquelas enquadradas dentro de um modelo heteronormativo, como no caso de Vale Tudo (1988), com Laís e Cecília e depois Laís e Marília – em relacionamentos estáveis, monogâmicos, duradouros, não procriativos e discretos.

Ainda dentro da lógica de regulação e legitimação da sexualidade, o casal Laís e Cecília é responsável pela tematização sobre um assunto importante: os direitos sexuais. A partir da morte de Cecília, pela primeira vez, se debate a inacessibilidade de direitos que homossexuais tinham na década de 1980 e o desamparo em caso de falecimento de um dos companheiros ou de separação.

É na década de 1980 que as vivências trans começam a adquirir visibilidade. Em tom jocoso e de comicidade em Um Sonho A Mais (1985) e com destaque de Ninete em Tieta (1989). Ela desestabiliza o gênero e confunde as personagens acostumadas com o binário “masculino e feminino” e em diversas cenas há discussões sobre o respeito às diferenças.

Ney Latorraca vive transexual na novela 'Um Sonho a Mais'
Anabela Freire, uma das várias personagens vividas por Ney Latorraca em 'Um Sonho a Mais'

Uma crítica que se fazia a personagens gays é que eles não tinham relacionamento, eram apenas efeminados, quando isso mudou?
A crítica é pertinente, mas em alguma medida absolutiza as personagens sem perceber as rupturas e ao mesmo tempo normatizar os comportamentos. Em 1970, as primeiras lésbicas que apareceram nas telenovelas formaram um casal. De forma geral, as personagens homossexuais femininas formam relacionamentos ao longo da trama. Já as personagens gays só terão esta vivência a partir dos anos 1980, com Brilhante. Muitas personagens vivenciam relacionamentos na fase final das novelas.

Acredito que durante muito tempo se questionou o papel único e exclusivo dos homossexuais masculinos como personagens responsáveis por um humor jocoso, que inferiorizava gays. Entretanto, ao fazer essa crítica corre-se o risco de cair na armadilha de legitimar apenas performatividades de gênero mais adequadas à norma heteronormativa, podendo neste sentido higienizar identidades. 

De forma geral, especialmente a partir dos anos 2000, a absoluta maioria das personagens LGBT constituíram relacionamentos ao longo das tramas, alguns sendo tematizados desde o príncipio, outros por meio das narrativas de revelação – na qual, ao longo da trama, se apresenta a sexualidade – e há um crescimento desta discussão.

Dentro das identidades de gênero e sexualidade que compõe a sigla LGBT, as pessoas travestis e transexuais são as que permanecem com uma menor vivência da sexualidade explicitada nas novelas. Não por acaso, a atriz Rogéria, se considera a "travesti da família brasileira": ela praticamente não vivencia relacionamentos nas novelas, não transgredindo de forma emblemática as normas, pois suas personagens permancem assexuadas nas narrativas.

Félix (Mateus Solano) em 'Amor à Vida'
Félix (Mateus Solano) em 'Amor à Vida'

Você diria que as representações a partir dos anos 2000 têm sido mais "ativistas", levantando questões como violência, adoção?
Há sem dúvidas um crescimento, mas que acontece após uma construção de décadas. Em 1988, Vale Tudo, houve a primeira novela com a discussão de direitos sexuais. Em outras narrativas da década de 1990, os conflitos familiares também suscitaram a discussão por direitos, mas é sem dúvida na década de 2000 que o debate sobre o preconceito e/ou discriminação contra identidades de gênero e/ou sexuais não normativas eclode.

Teremos nessa década as primeiras discussões sobre a violência física sofrida por LGBTs, assim como o direito a união estável – e posteriormente ao matrimônio – e à adoção. Nos últimos cinco anos este debate tem sido mais incisivo, em novelas como Insensato Coração (2011) – com o assassinato da personagem Gilvan e a formalização da união estável entre Hugo e Eduardo. Em Amor à Vida, trama central na discussão do livro, houve a primeira tematização do uso do recurso de inseminação artificial por casais homossexuais, além da própria apresentação de um vivência de casal gay com uma criança adotada.

A obra está em pré-venda pelo site www.bichanemtaoma.com.br


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